domingo, 29 de dezembro de 2013

Capítulo Zero - Falso

Algo irreal, insensível. Uma consciência silenciada de propósito, evaporado da realidade. Imerso em um tubo de ensaio chamado coma, afundando em irrealidade e psicodelia. Outra noite mal dormida, outra historia a ser contada.

Há algum tempo esses campos foram verdes, floridos e alegres. Hoje não passam de paragens amareladas, tediosas e amargas. Traziam lembranças ressentidas a Bruna. Não existiam estradas, nem mesmo uma trilha a ser seguida. Estava perdida. Perdida em sua própria mente. Vagando pelo seu próprio pesadelo. Uma brisa suave atingia seu peito, fazendo com que suas roupas criassem curvas interessantes com o passar do vento fraco. Seu cabelo desgrenhado teimava em cobrir os olhos. Tinha a sensação que a qualquer momento deveria acordar, mas algo a prendia àquele mundo. Era forte, disto a garota tinha certeza. Talvez fosse uma corrente de tédio. Sim... Provavelmente era isso. Estava cansada do mundo, das pessoas. Todos aqueles sorrisos amarelos, olhares astutos à primeira falha. Era frustrante, irritante. A grama apodrecida parecia crepitar sob seus pés. Por um momento, sentiu-se livre. Era gratificante ver aquele final de tarde eterno, o silêncio da paisagem quebrado apenas pelo canto do vento. Sorriu ao encarar o horizonte por mais uma vez. Estava na hora de despertar, de acordar para o mundo imundo a qual fora submetida.
Talvez não desta vez...

Abriu novamente os olhos, apenas para o horizonte fitar mais uma vez. Estranho, incomum. Fechou novamente os olhos e cortejou a escuridão de sua mente. Enxergou algo, um sorriso. Um passo ou dois. Seu corpo se movia sozinho agora. Sorriu novamente, mas já não era ela. Algo maior, devastador, incrivelmente poderoso. Parou. O coração parecia lhe rasgar o peito e saltar para fora. Sua pele estava em chamas, queimando em fogo brando. Abriu os olhos. A grama apodrecida lhe deu as boas vindas novamente, como uma velha conhecida. Arqueou as sobrancelhas, confusa. O único lugar onde poderia ficar sozinha estaria se transformando em algo mais cruel que a realidade? Não... Eu controlo isso. Pensava a garota, inquieta. Procurou ao redor seu ponto de escape. Lucius sempre frisava este ponto e por vezes Bruna prestara atenção a suas aulas. Vamos lá... Qual era mesmo... Tentava lembrar, mas por mais que sua mente fosse compenetrada em um objetivo, as drogas fizeram-na esquecer. Estava perdida e abandonada, dragada para aquele mundo imprevisível e irreal. Fechou novamente os olhos e desejou.

Qual é seu desejo? – Disse a voz na escuridão.

Sair desse lugar... Escapar...

Para tal coisa, será necessária uma troca. O que quer barganhar? – Repetiu a voz, com um tom inebriante.

Um, dois, três. Tique-taque, um barulho contínuo de despertar.
Arthur parou por um momento. Aquilo era realmente um sonho? O que estava acontecendo? Por um momento, pode jurar que era outra pessoa, outra coisa. Acordou suado no velho apartamento alugado por seus pais. Seus lençóis amassados eram a recordação da noite de sonhos estranhos. Confuso, arrastou-se até o banheiro. Um reflexo acabado de sua aparência era manifestado no espelho. A barba está por fazer e as olheiras estão piores a cada dia. Seu coração ainda batia apressadamente, como se corresse para um compromisso inevitável.

Suas mãos atingem a face com a água que sai da torneira. Uma tentativa de despertar de vez? Sempre teve essa dúvida. Como saber se está realmente desperto, que esta é a verdadeira realidade...

Balançou a cabeça, ignorando seus devaneios. Mas havia algo errado. O céu noturno da cidade indicava que haveria algum tempo até que o garoto tivesse que deixar o lugar. Sentou-se a beirada da cama, encarando o vazio da parede. Um coração que parecia preenchido com medo e insegurança. Não era seu, tinha certeza disto. Um nome era repetido em sua mente, como um pedido de socorro desesperado. Bruna. Nunca a vira em lugar algum, nem mesmo em fotos. Tinha certeza disso. De poucas coisas que aquele garoto poderia se orgulhar na vida, ser um bom observador era uma delas. E as coisas que o jovem podia se orgulhar em sua infrutífera vida eram poucas. Levantou-se da cama e caminhou pelo quarto, tropeçando em uma ou duas garrafas vazias de cerveja. Dezessete anos e quase um alcoólatra. Diria seu pai. Você não tem responsabilidade para fazer nada, e ainda quer morar sozinho? Diria sua mãe. Vozes repetidas em sua mente, acumuladas com o tempo. Esmurrou a parede, frustrado, mas ainda sim sorriu. Fez seu caminho até a cozinha no escuro. Às vezes, a luz o incomodava. Gostava de como a escuridão era sedutora em sua forma abstrata. Abriu a geladeira e sacou uma garrafa de água. O líquido gelado desceu por sua garganta, inundando seu corpo e alma com o frio. Lembranças e devaneios passados o esmurravam como um boxeador profissional. E por outro momento, não era mais Arthur.

Bruna encarou seu destino como uma bela vassala. Sorria para a caveira branca que lhe cortejava, prometendo o mundo à jovem. Mostrava um novo mundo, criado a partir do zero, transformado. Pessoas gentis, sem guerras, sem o tédio habitual. Sem o eventual nojo proposital daqueles seres imundos pelos quais a mesma era obrigada a chamar de “Irmãos”.  Estava cansada da hipocrisia, das mentiras e da bile que era obrigada a segurar em seu fígado. Gostaria de expelir no rosto daqueles malditos, porcos estúpidos sem coração. A criatura sorria ao mostrar imagens de felicidade para a jovem. Era fácil e ela era perfeita. O plano estava pronto e seria executado com maestria inigualável.

De volta à realidade, Arthur se encontrou caído ao chão da cozinha, acovardado. Sentia como se grilhões invisíveis prendessem sua pele, grudando-o ao chão. A dor que sentia havia superado os limites da compreensão humana. Era infinita, assim como a escuridão que crescia no apartamento do jovem Arthur Oliveira. Gritava, mas de sua boca as palavras não saíam. Chorava, mas apenas sangue escorria de seus olhos. Mesmo em seus mais terríveis pesadelos, Arthur Oliveira não poderia imaginar o que iria acontecer nas próximas semanas. Não deveria.

Na escuridão, alguém sorriu.

Dou-lhe uma escolha, criança. Teu destino a ti pertence. Mas qual caminho trilhará? Extermine meu tédio ou encare os fatos como eles são... Será uma produtiva caminhada. Minha pergunta é: Como irá andar, se teus pés a mim pertencem? – Dizia a voz sibilando na escuridão. Arthur lutava contra a loucura, emendando seus gritos mudos a eventuais tentativas de libertação. Em vão. A criatura, seja lá o que for, desejava uma resposta. – Deixarei que pense bem. Gosto de ver minhas vítimas berrando antes de esmaga-las como baratas... É o que farei, ouviu garotinho? Vou esmagar seu mundinho miserável e fétido, e vou adorar... Vejo-te em breve, Arthur Oliveira.

O garoto gritou. Seu grito foi libertado.

A garota sonhou. Seu corpo não acordou.

Alguém sorriu. Na escuridão oculto.

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