Palhaço
– Em meus sonhos mais perversos, me encontrei com ela
algumas vezes. Sabe, brincando por aí com aquela carinha inocente... Era uma
época boa, divertida. Você se diverte com frequência senhorita? – Perguntei,
terminando de prender a fita silver-tape
ao redor das mãos da garota. Coloquei-a sentada em uma velha cadeira de
alumínio, logo após arrasta-la por alguns corredores e dois ou três lances de
escada. Não parecia ter muito cérebro, ou pelo menos não aparentava – Você deve
ter entre dezoito e vinte anos, uma idade onde suas opiniões deveriam estar
começando a se formar. Adoraria perguntar para um psicólogo se você foi a
escolha certa, mas ele me tomaria por louco. De fato, isso não seria agradável e
atrapalharia minha jornada – Agarrei uma prancheta vazia, ensaiando um
monólogo. Era divertido imaginar como a polícia descobriria caso meu plano
falhasse – A garota saía da piscina do
hotel aproximadamente às 23:00 hrs e nem mesmo o zelador estava ali no momento
que cruzei os banheiros fedendo a cloro. A quem estou tentando enganar...
Sou péssimo nisso, não sou? Hei, estou falando com você! – Gritei. Nenhuma
resposta de minha expectadora. Para alguém presa a um assento e forçada a me
escutar, a jovem era extraordinariamente desatenta e adepta a prática do
cochilo. Ergui minha mão e acertei sua face, fazendo o som ecoar pela sombria
sala de estar. Minha expectadora finalmente despertou por encanto e encarou-me
por alguns segundos. Sua visão alternava-se do repleto horror ao fascínio de
descobrir algo novo. Por questões morais, tratei de vesti-la adequadamente para
esta situação, colocando-a em um traje esportivo encontrado em seu
guarda-roupa.
– O-onde estou? – Perguntou a pequenina, ora olhando
para minha maravilhosa máscara, ora encarando a escuridão que nos cercava –
Quem é você? – Perguntou, quase aos prantos. Deliciei-me com tais soluços.
– O nome que mamãe me deu, não posso te falar. Mas que
todo mundo chama posso. Permita me apresentar milady. Sou O Palhaço...
– Assim que proferi minha alcunha, a miserável irrompeu um grito desafinado.
Presenteei-lhe com um soco em seu olho esquerdo, porém me arrependi logo
depois. Com um olho danificado, ela não poderia ver meu interrogatório com todo
seu esplendor.
– Por que você me trouxe aqui... O que você quer de
mim? – Clamou a jovem, tremendo pelo frio e medo – V-Você vai me matar? –
Perguntou por fim, com os olhos injetados em pânico. Aproximei-me lentamente, a
tempo de examinar sua pupila dilatada. Seus leitosos olhos cor-de-mel brilharam
e mais lágrimas correram por sua face.
– Ainda não decidi. Tenho algumas perguntas para você,
e você vai me responder... Custe o que custar... – Disse, sorrindo. Uma pena a
garota não poder notar graças a mascara, mas isto era um mal necessário. Caso a
miserávelzinha conseguisse escapar pela lábia como a outra e superasse o
desafio, eu estaria em segurança, preso ao anonimato.
– Fala o que eu tenho que fazer, eu faço qualquer
coisa. Eu juro! – Soluçou a garota – Se você quiser, posso me deitar com você.
Ou posso te dar dinheiro! É isso que você quer? Dinheiro? – Exclamava a jovem,
sem alternativas. Sorri em desacordo. Era irônico ver um ser tão desprezível
retorcendo-se como um verme, pronto para ser esmagado. Reduzida a migalhas de
seu status, a garota não era mais do que um pequeno brinquedo em minhas mãos.
– Suas propostas são tentadoras, mas... O que eu
quero... – Afirmei aproximando-me de seu ouvido, sussurrando a resposta – É uma
resposta, uma só.
– Q-Qual é a pergunta então!? – Gritou, agora
transpirando em um desespero preocupante. Não fosse a extensa vedação de som
que fiz, o prédio inteiro saberia que práticas estranhas aconteciam no terceiro
andar. Ou então que algum casal era adepto ao sadomasoquismo.
– Por quê?
A jovem encarou o circulo vermelho em meu nariz por
alguns instantes. Seus olhos tremiam, aflitos. Parecera não entender minha
pergunta, o que fez crescer um constante desapontamento em minha mente. Talvez
o plano estivesse atrasado... Ou talvez essa fosse a pessoa errada, mas os
relatórios diziam que...
– Vou repetir. Por quê? – Perguntei, calmamente.
Novamente, a garota ignorou minha pergunta com uma careta ridiculamente
irritante – Acho que isso não vai dar certo... Você é mesmo uma inútil sabia?
Mas vou te dar uma chance, só mais uma, entendeu? – Exclamei em clara
irritação. Com um grande facão em punho, dei a volta e busquei na mesa da
cozinha alguns papéis que trouxera comigo. Iniciei uma pequena literatura para
a garota, que me observava, assustada com cada palavra que escapulia pela
abertura da máscara – Aqui está! Seu nome é... Daniela? Daniela Faccini. Que
belo nome, tão clichê, mas um belo nome. Onde eu estava... Ah sim! Morou com os
pais, podres de tão ricos, até os vinte anos e agora está cursando uma
universidade em São Paulo... Vejam só, temos uma... Carioca? – Daniela olhou-me
com descrença, quase desacreditando de minha presença, tentando acreditar que
tudo se tratava de um maravilhoso sonho masoquista. Uma coronhada com o cabo da
faca trouxe a garota um pouco de realidade.
– C-Como você sabia tudo isso sobre mim... Como é que
você tem todas essas informações? – Questionou Daniela, desta vez temerosa. A
hesitação em pronunciar cada palavra provocava surtos histéricos em meu
coração.
– O que? Isso aqui? – Disse, erguendo o pequeno
punhado de papéis – Eu sou um rapaz muito inteligente e sei procurar nos
lugares certos. Eu encontro cada informação boa, mas... Você tem que parar de
cochilar minha queridinha, ou vou ter que cortar alguns bifes para o jantar...
– Ri de minha analogia, mas meu sorriso se desfez quando a piada não contagiou
Daniela. Simplesmente dei de ombros e continuei a leitura – Ah, sim! Aqui diz
uma coisinha muito interessante sobre você. Ofídiofobia derivada de um acidente
que sofreu quando criança durante uma excursão da escola pelo Parque Nacional
da Tijuca. Tsc tsc... Tão patética, um bichinho tão inofensivo... Mas sabe,
usando alguns contatos eu até consegui algo parecido! Mas não é do mesmo tipo
que te mordeu, que peninha... – Disse, ainda com um sorriso pronunciado, me
preparando para anunciar o grande espetáculo da noite.
– Não! Pelo amor de Deus! Eu te imploro por tudo que é
mais sagrado neste mundo! Eu juro por Deus, pelo Diabo, por você, pelo que
for... Eu faço o que quiser e te dou o que quiser, mas não isso! – Urrava a
jovem, inclinando seu corpo e forçando uma escapatória. Seus gritos eram um
suave deleite aos meus ouvidos – Eu estou suplicando... Isso não... Eu não
posso... E-Eu não q-quero... – Daniela parecia engasgar-se com suas próprias
palavras, conseguindo fracamente chiar. Faltava-lhe ar nos pulmões.
– Ó! Veja só... Eu terei um bônus. Sabe o que está
acontecendo minha jovenzinha? Os caras de branco chamam de Síndrome de Burnout[1].
Nome idiota né? Ele é ocasionado por tensão emocional e estresse crônicos. Você
está estressada Daniela? Achei que estava tendo o grande momento de sua vida! –
Exclamei, buscando inspirar minha telespectadora. Novamente, precisei de uma
coronhada para trazê-la novamente a realidade. Enquanto a jovem voltava,
busquei um pequeno caixote que trouxe para este caso em especifico. Uma pequena
caixa de madeira com alguns furos para ventilação e um aviso em vermelho, que
logo ignorei. Um animal tão inofensivo não forneceria risco algum para uma
brincadeira tão sadia não é mesmo? Ri de minha ingenuidade, encarando Daniela
enquanto uma gentil jararaca enrolava-se em sua calça, escalando seu corpo com
destreza. A garota arfava, buscando o ar que nos seus pulmões clamavam – Pela
última vez Daniela, me responda! POR QUÊ?
Daniela nada respondeu. Utilizando luvas, arranquei a
cobra de seu corpo e a devolvi a caixa. Minha missão havia fracassado e esta
batalha estava perdida, porém a guerra ainda continuava. De certa forma, era
exigido um sacrifício para que a sanidade continuasse a me guiar, assim como
nos tempos antigos. Soltei Daniela das fitas que lhe prendiam e pude vislumbrar
a esperança crescer nos olhos da jovem.
– O-obrig... – Em seguida, tudo que ouvi foi o
gorgolejar de sua fala, sufocada pelo próprio sangue que vazava em fartura por
um extenso talho aberto em seu pescoço. O corte transversal foi perfeito e
assim deixei-a, caída naquele lugar de tristeza e desesperança. Como último
consolo, acrescentei ao nariz de Daniela um agrado. Um singelo adereço
avermelhado, gravado em letras garrafais.
Por quê?
A síndrome de
burnout, ou síndrome do esgotamento profissional, é um distúrbio psíquico
descrito em 1974 por Freudenberger, um médico americano. O sintoma típico
da síndrome de burnout é a sensação de esgotamento físico e emocional que
se reflete em atitudes negativas, como ausências no trabalho,
agressividade, isolamento, dores musculares, insônia, crises de asma. Sua
principal característica é o estado de tensão emocional e estresse crônico
provocado por condições físicas, emocionais e psicológicas desgastantes.
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