quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Capítulo IV

Palhaço


– Em meus sonhos mais perversos, me encontrei com ela algumas vezes. Sabe, brincando por aí com aquela carinha inocente... Era uma época boa, divertida. Você se diverte com frequência senhorita? – Perguntei, terminando de prender a fita silver-tape ao redor das mãos da garota. Coloquei-a sentada em uma velha cadeira de alumínio, logo após arrasta-la por alguns corredores e dois ou três lances de escada. Não parecia ter muito cérebro, ou pelo menos não aparentava – Você deve ter entre dezoito e vinte anos, uma idade onde suas opiniões deveriam estar começando a se formar. Adoraria perguntar para um psicólogo se você foi a escolha certa, mas ele me tomaria por louco. De fato, isso não seria agradável e atrapalharia minha jornada – Agarrei uma prancheta vazia, ensaiando um monólogo. Era divertido imaginar como a polícia descobriria caso meu plano falhasse – A garota saía da piscina do hotel aproximadamente às 23:00 hrs e nem mesmo o zelador estava ali no momento que cruzei os banheiros fedendo a cloro. A quem estou tentando enganar... Sou péssimo nisso, não sou? Hei, estou falando com você! – Gritei. Nenhuma resposta de minha expectadora. Para alguém presa a um assento e forçada a me escutar, a jovem era extraordinariamente desatenta e adepta a prática do cochilo. Ergui minha mão e acertei sua face, fazendo o som ecoar pela sombria sala de estar. Minha expectadora finalmente despertou por encanto e encarou-me por alguns segundos. Sua visão alternava-se do repleto horror ao fascínio de descobrir algo novo. Por questões morais, tratei de vesti-la adequadamente para esta situação, colocando-a em um traje esportivo encontrado em seu guarda-roupa.

– O-onde estou? – Perguntou a pequenina, ora olhando para minha maravilhosa máscara, ora encarando a escuridão que nos cercava – Quem é você? – Perguntou, quase aos prantos. Deliciei-me com tais soluços.

– O nome que mamãe me deu, não posso te falar. Mas que todo mundo chama posso. Permita me apresentar milady. Sou O Palhaço... – Assim que proferi minha alcunha, a miserável irrompeu um grito desafinado. Presenteei-lhe com um soco em seu olho esquerdo, porém me arrependi logo depois. Com um olho danificado, ela não poderia ver meu interrogatório com todo seu esplendor.

– Por que você me trouxe aqui... O que você quer de mim? – Clamou a jovem, tremendo pelo frio e medo – V-Você vai me matar? – Perguntou por fim, com os olhos injetados em pânico. Aproximei-me lentamente, a tempo de examinar sua pupila dilatada. Seus leitosos olhos cor-de-mel brilharam e mais lágrimas correram por sua face.

– Ainda não decidi. Tenho algumas perguntas para você, e você vai me responder... Custe o que custar... – Disse, sorrindo. Uma pena a garota não poder notar graças a mascara, mas isto era um mal necessário. Caso a miserávelzinha conseguisse escapar pela lábia como a outra e superasse o desafio, eu estaria em segurança, preso ao anonimato.

– Fala o que eu tenho que fazer, eu faço qualquer coisa. Eu juro! – Soluçou a garota – Se você quiser, posso me deitar com você. Ou posso te dar dinheiro! É isso que você quer? Dinheiro? – Exclamava a jovem, sem alternativas. Sorri em desacordo. Era irônico ver um ser tão desprezível retorcendo-se como um verme, pronto para ser esmagado. Reduzida a migalhas de seu status, a garota não era mais do que um pequeno brinquedo em minhas mãos.

– Suas propostas são tentadoras, mas... O que eu quero... – Afirmei aproximando-me de seu ouvido, sussurrando a resposta – É uma resposta, uma só.


– Q-Qual é a pergunta então!? – Gritou, agora transpirando em um desespero preocupante. Não fosse a extensa vedação de som que fiz, o prédio inteiro saberia que práticas estranhas aconteciam no terceiro andar. Ou então que algum casal era adepto ao sadomasoquismo.

– Por quê?

A jovem encarou o circulo vermelho em meu nariz por alguns instantes. Seus olhos tremiam, aflitos. Parecera não entender minha pergunta, o que fez crescer um constante desapontamento em minha mente. Talvez o plano estivesse atrasado... Ou talvez essa fosse a pessoa errada, mas os relatórios diziam que...

– Vou repetir. Por quê? – Perguntei, calmamente. Novamente, a garota ignorou minha pergunta com uma careta ridiculamente irritante – Acho que isso não vai dar certo... Você é mesmo uma inútil sabia? Mas vou te dar uma chance, só mais uma, entendeu? – Exclamei em clara irritação. Com um grande facão em punho, dei a volta e busquei na mesa da cozinha alguns papéis que trouxera comigo. Iniciei uma pequena literatura para a garota, que me observava, assustada com cada palavra que escapulia pela abertura da máscara – Aqui está! Seu nome é... Daniela? Daniela Faccini. Que belo nome, tão clichê, mas um belo nome. Onde eu estava... Ah sim! Morou com os pais, podres de tão ricos, até os vinte anos e agora está cursando uma universidade em São Paulo... Vejam só, temos uma... Carioca? – Daniela olhou-me com descrença, quase desacreditando de minha presença, tentando acreditar que tudo se tratava de um maravilhoso sonho masoquista. Uma coronhada com o cabo da faca trouxe a garota um pouco de realidade.

– C-Como você sabia tudo isso sobre mim... Como é que você tem todas essas informações? – Questionou Daniela, desta vez temerosa. A hesitação em pronunciar cada palavra provocava surtos histéricos em meu coração.

– O que? Isso aqui? – Disse, erguendo o pequeno punhado de papéis – Eu sou um rapaz muito inteligente e sei procurar nos lugares certos. Eu encontro cada informação boa, mas... Você tem que parar de cochilar minha queridinha, ou vou ter que cortar alguns bifes para o jantar... – Ri de minha analogia, mas meu sorriso se desfez quando a piada não contagiou Daniela. Simplesmente dei de ombros e continuei a leitura – Ah, sim! Aqui diz uma coisinha muito interessante sobre você. Ofídiofobia derivada de um acidente que sofreu quando criança durante uma excursão da escola pelo Parque Nacional da Tijuca. Tsc tsc... Tão patética, um bichinho tão inofensivo... Mas sabe, usando alguns contatos eu até consegui algo parecido! Mas não é do mesmo tipo que te mordeu, que peninha... – Disse, ainda com um sorriso pronunciado, me preparando para anunciar o grande espetáculo da noite.

– Não! Pelo amor de Deus! Eu te imploro por tudo que é mais sagrado neste mundo! Eu juro por Deus, pelo Diabo, por você, pelo que for... Eu faço o que quiser e te dou o que quiser, mas não isso! – Urrava a jovem, inclinando seu corpo e forçando uma escapatória. Seus gritos eram um suave deleite aos meus ouvidos – Eu estou suplicando... Isso não... Eu não posso... E-Eu não q-quero... – Daniela parecia engasgar-se com suas próprias palavras, conseguindo fracamente chiar. Faltava-lhe ar nos pulmões.



– Ó! Veja só... Eu terei um bônus. Sabe o que está acontecendo minha jovenzinha? Os caras de branco chamam de Síndrome de Burnout[1]. Nome idiota né? Ele é ocasionado por tensão emocional e estresse crônicos. Você está estressada Daniela? Achei que estava tendo o grande momento de sua vida! – Exclamei, buscando inspirar minha telespectadora. Novamente, precisei de uma coronhada para trazê-la novamente a realidade. Enquanto a jovem voltava, busquei um pequeno caixote que trouxe para este caso em especifico. Uma pequena caixa de madeira com alguns furos para ventilação e um aviso em vermelho, que logo ignorei. Um animal tão inofensivo não forneceria risco algum para uma brincadeira tão sadia não é mesmo? Ri de minha ingenuidade, encarando Daniela enquanto uma gentil jararaca enrolava-se em sua calça, escalando seu corpo com destreza. A garota arfava, buscando o ar que nos seus pulmões clamavam – Pela última vez Daniela, me responda! POR QUÊ?

Daniela nada respondeu. Utilizando luvas, arranquei a cobra de seu corpo e a devolvi a caixa. Minha missão havia fracassado e esta batalha estava perdida, porém a guerra ainda continuava. De certa forma, era exigido um sacrifício para que a sanidade continuasse a me guiar, assim como nos tempos antigos. Soltei Daniela das fitas que lhe prendiam e pude vislumbrar a esperança crescer nos olhos da jovem.

– O-obrig... – Em seguida, tudo que ouvi foi o gorgolejar de sua fala, sufocada pelo próprio sangue que vazava em fartura por um extenso talho aberto em seu pescoço. O corte transversal foi perfeito e assim deixei-a, caída naquele lugar de tristeza e desesperança. Como último consolo, acrescentei ao nariz de Daniela um agrado. Um singelo adereço avermelhado, gravado em letras garrafais.

Por quê?



A síndrome de burnout, ou síndrome do esgotamento profissional, é um distúrbio psíquico descrito em 1974 por Freudenberger, um médico americano. O sintoma típico da síndrome de burnout é a sensação de esgotamento físico e emocional que se reflete em atitudes negativas, como ausências no trabalho, agressividade, isolamento, dores musculares, insônia, crises de asma. Sua principal característica é o estado de tensão emocional e estresse crônico provocado por condições físicas, emocionais e psicológicas desgastantes.

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